sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

CLUBE DA MADRUGADA, PALHAÇOS AMAZONENSES, CAVALOS, BÊBADOS TELEPÁTICOS E DIEGO

PREFÁCIO

Não sei o porquê, mas depois da globalização capitalista- neoliberal, a África, a Ásia e a América começaram a tentar saber aquilo que as tornavam África, Ásia e América.Chamei de desglobalização esse movimento cultural de reinventar as identidades culturais destes continentes , para diferenciá-los do One Way , dos Estados Unidos, e Two Way, da Europa.
Como sabemos que tudo é humano, e que esta é a identidade central que interessa, a nova identidade dos continentes conectou culturas ditas particulares e fez surgir , a partir de cada continente, várias dimensões humanas globais - particulares e universais ao mesmo tempo. O universal se confirmou como o regional de alguém que não apenas vendeu para todo mundo; mas que pelo menos todo mundo foi informado da sua existência. A aldeia global passou de aldeia globalizada para aldeia desglobalizada.
Quando a globalização dos séculos XVII e XVIII colocou portugueses e ameríndios em confrontos raciais no Amazonas, a épica da luta criou uma épica da literatura.Era um conflito de raça, entre Muras e Portugueses, digamos assim, criando uma consciência épica e uma consciência épica gerando, também digamos assim, uma expressão artística. Se me faço entender: o poema épico Muraihda, do soldado português Henrique João Wilkens, expressou a visão genocida do invasor, do vencedor provisório. E, de fato, o poema era formalmente épico , mesmo que falso,mesmo que genocida.O que é lamentável.
De igual modo, em uma simetria histórica, quando a globalização do século XIX exigiu nosso látex para servir de matéria – prima para a indústria da vulcanização, o regime dos seringais gerou o conflito de classes. Se portugueses e indígenas geraram um ambiente épico, de epopéia, latifundiários e camponeses em conflito geraram um clima de tragédia . Este ambiente trágico gerou uma consciência trágica. Esta consciência trágica gerou uma expressão artística- literária igualmente trágica e o ambiente mental para os estilos naturalista e realista.
Alberto Rangel, no Inferno Verde, traduziu o confronto naturalista do meio com o homem em contos memoráveis. O português Ferreira de Castro, em um romance,mostrou o conflito entre homens a partir de suas posições sociais no modelo econômico . E o mostrou a partir de uma estética trágico-realista.
A globalização industrial do modelo Zona Franca transferiu a tragédia social da área rural para a cidade. O realismo também se transferiu. Porém não mais como expressão do trágico, mas agora como expressão do absurdo social e do absurdo como expressão artística.
Com a industrialização, Manaus passou a ser uma cidade absurda. Um dos maiores Produtos Internos Brutos e um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano. Um parque industrial de high Tech, cercado por 16 comunidades indígenas e centenas de favela. O maior rio de água doce do mundo e a cidade com um dos piores abastecimentos de água potável. A cidade com maior número de igarapés e todos, tirando o Água Branca, no Tarumã,todos poluídos. Igarapés à disposição e um trânsito insuportável. Manaus é sim uma cidade absurda. Aliás, é a expressão do absurdo.Daí que qualquer outra percepção estética ou qualquer outra expressão estética que não seja a perplexidade do absurdo será absurda, absurdamente deslocada ou desfocada.
Diego Morais reconstrói a identidade cultural urbana na Amazônica desglobalizada por esta ótica. Ele e a sua e a nossa geração de escritores. Iniciou sua jovem carreira de escritor com um livro de contos - Saltos Ornamentais no Escuro. E agora, está lançando Cabeça de Pó. E cometeu o desatino de me solicitar um prefácio.
Em vários contos do livro Cabeça de Pó, Diego é um regionalista do mundo escondendo sua universalidade Amazônica.Mas em três contos ele é um universalista Amazônico escondendo sua regionalidade. São estes três os contos que destaco no livro e o faço pela relação regional-universal na época da desglobalização.
Em Clube da Madrugada e em Palhaços Amazônicos ele trata do tema identidade cultural. No conto Cavalos, Sonhadores e Bêbados Telepáticos, Diego define a si próprio como escritor: o tempero inclui realismo, absurdo,musicalidade e cinema. Um novo gênero?
Em Clube da Madrugada, ele busca sua identidade cultural na tradição literária do Amazonas, sua terra. Presta conta com o Modernismo do Clube e o faz não apenas com sentido crítico, mas com uma ironia, por vezes, injusta, por vezes justíssima.
Sem identificar qual tendência modernista - regionalesca do Clube, e aí,talvez, o injusto da ironia, ele dispara: “ escritos madrugadeiros empapuçados de pés de moleque!“ , (...)“ estão amarelos e gordos de tanta mentira ensaiada em forma de poemas de foca mamando em vitória-régia”. E ainda quer saber, talvez justamente: “ quantas profecias escreveram trancados nos porões refrigerados do glorioso embuste?”.
Em Palhaços Amazonense, dois artistas mambembes, de nomes pouco Amazônicos, vivem uma experiência entre Manaus e uma “Manaquiri fumaçenta’. Ganham a renda do dia fazendo os outros rir o dia todo. Mas palhaço é um artista importado. Não é um Bayaroá indígena. Não é da tradição da dança, do canto, da música,das artes visuais, do artesanato, da cestaria, nem dos rituais da floresta. O palhaço se adaptou. Por isso, em uma identidade amazônica desglobalizada, ele possui um lugar. O mesmo lugar do Batman e do Coringa. Ele veio com o circo, assim como as personagens de Gotham City vieram pelas revistas, pela televisão e pelo cinema. Entraram e não mais saíram do imaginário amazônico, mesmo que antropofagicamente. Manifesto Pau-Brasil. Engolimos também o nosso Bispo Sardinha. Por isso, no Amazonas , e no conto do Diego, o Coringa vence o Batman.
No conto Cavalos, Sonhadores e Bêbados Telepáticos, Diego mostra , em termos metalingüísticos, sua forma literária do microconto . Mostra também seu gênero, seu estilo realista-absurdo e sua linguagem influenciada pelo corte cinematográfico e pela musicalidade, isto é: pelo ritmo veloz e alucinado.
O ambiente é o Bar Castelinho, no centro urbano-industrial de Manaus, capital do Amazonas. No centro da única capital brasileira que junta indústria high-tech com 16 etnias indígenas ,falando várias línguas.Neste bar, você pode encontrar indígenas escutando James Brown ou ainda brancos e mestiços, e às vezes,negros, escutando, a musicalidade da floresta. Nele você pode também encontrar o Diego, assim como outros escritores, poetas , Cavalos, Sonhadores e Bêbados Telepáticos conversando sobre literatura, gêneros, formas, estilos e linguagens.
Diz um deles: “Os caras dizem que inventastes uma nova forma de escrever, mistura de cinema, realismo, musicalidade e absurdo”.
Diz o Diego: “ Todo macaco escreve diferente”.
Diz outro deles: “ Eu sou a lenda ”.
Diz o Diego: “ Eu sou o monstro”.
Diz outro: “ Ingrediente de um novo gênero?”
Diego diz que não pertence a tradição nenhuma. Não é verdade. Ao escrever um conto, mesmo que micro, já pertence a uma tradição. Prefiro dizer que pertence a uma tradição e a melhor das tradições: a tradição da ruptura. Diego pertence também a tradição realista, pertence também a tradição que varia o maravilhoso, o fantástico e o absurdo. No melhor dos caos, pertence à tradição de inovar a tradição. Por dentro, para implodi-la e deixar a literatura vazar. Uma literatura que cheira, que é melhor que a literatura que fede.

Um comentário: