terça-feira, 29 de setembro de 2009

CUNHÃ:MONÓLOGO DO ÀS VEZES

I
I
( Nasci há dez mil anos atrás... Da lágrima da estrela )


Se eu tivesse dez centímetros a mais, pele clara e olhos azuis, nada garantiria que eu cantasse melhor, mas o sucesso, mesmo que eu não quisesse e não fosse atrás dele, ele viria atrás de mim.
Mas não: Ora já. Sou dez centímetros mais baixa, pele morena queimada de sol e olhos garços, mas isto também não me garante que eu cante melhor, e mesmo se cantasse e corresse atrás do sucesso, ele fugiria de mim.
Eu sei que esta leseira de raça é papo furado, é bacaba sem açúcar. Foram três fuleiros, no século XIX brasileiro, que inventaram a teoria das três raças: Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha.
Alias antes deles, o Brasil era o país das duas raças. José de Alencar criou o Guarani, antes da abolição da escravidão, para mostrar que o Brasil era a fusão de duas raças: o branco e o índio enbranquecido: quer dizer: tudo era branco.
Depois da abolição da escravidão era necessário incluir o negro porque ele deixou de ser escravo. Daí, veio aqueles três fuleiros, o Silvio, o Nina e o Euclides, e disseram que o Brasil não era mistura de duas, mais de três raças.
Depois veio um outro e disse que não: não eram três raças, eram três culturas.
Depois veio um outro e disse que também não: não eram três culturas, era uma só, resultado das três. E essa uma só, não era qualquer uma, era aquela diferente da de fora, que mostrava que o brasileiro não era inglês, ou ganes, ou neozelandês.
Depois ainda vieram outros para dizer que para eu ser cabocla, eu não tinha que ser alienada, quer dizer: eu pensava com a minha cabeça e não com cabeça do de fora. Teria que ser dona do meu próprio juízo.
Ainda teve mais um, e desse eu gostei, que disse que para eu ser cabocla, eu tinha que entender que era uma camponesa, trabalhadora explorada pelo extrativismo, que não era minha cor, mas meus interesses, meus usos e os meus costumes de habitante do rio e da floresta. Disse até que eu poderia torcer pelo mesmo time de futebol do patrão, poderia gostar da mesma escola de samba, mas não do mesmo samba, porque tem o samba do patrão e tem o samba do trabalhador. Mas isso eu explico depois. Minha vida de cabocla camponesa não é a mesma vida confortável, embora estressada, do coronel ou do dono do agro-negócio. Nossas vidas tem valor diferente, e , eu acho, a minha é muito melhor.
O que existe mesmo, é uma raça só, a humana, o resto é tipo ou interesse. Não é cor que faz o caboclo, é consciência da sua colocação, do seu lugar no mundo.
Quando eu nasci, na beira do Igarapé do Mindú, ele era limpo. A Praia da Ponta Negra também. Eu tomava banho até às cinco da tarde, quando os Botos começavam a dançar a sua dança do pula-pula.
Era quando a minha mãe preta, que era uma índia mura do Careiro, gritava danada para meu irmão:
- Menino, olha o Boto, sai já da água.
Papai gritava:
- Fica na água mesmo, que Boto gosta é de mulher e em noite de lua cheia.
Foi assim que eu aprendi a lenda do Boto.
A lenda do Curupira, a do Matinta – Pereira e do Mapinguarí, eu aprendi no banho do seu Perí. Marido da Dona Zezé, aquela do Candomblé.
A preta mura, que tomava conta de mim, quando a tarde caia, e me via na mata, também gritava danada:
- Menina, já vão dar seis horas, sai já da mata, olha o Curupira.
Papai também aparecia e gritava:
- Curupira só ataca caçador e devastador da floresta.
A preta mura, valente que ela só, para não perder do papai, gritava:
- Então cuidado com o Matinta- Pereira, primo do Mapinguari, ele gosta de cunhã gita.
Foi assim que eu aprendi a lenda do Curupira, do Matinta-Pereira e do Mapinguarí.
Quando eu nadava no Igarapé do Mindú, também cinco da tarde, a preta mura também me ensinou outra lenda.
- Menina sai já daí, que é hora da Cobra Grande passar. Cuidado com a Boiúna, vixe olha o Boi-tatá.
Papai aparecia e gritava:
- Deixa de besteira, a Cobra Grande só ataca à noite, meu Deus do céu.
Assim que eu comecei a ser uma indígena-cabocla, com os mitos dos índios e com os Deuses do branco.

(Entra música Uirapuru, de Valdemar Henrique)

II
( Deixando de ser caboca )


Depois, Manaus cresceu, e eu também. Pensei que as indústrias iam melhorar a vida de todo mundo, fazer todo mundo crescer. Mas não, só melhorou a vida dos donos das industrias.
Pensei que as industrias iam melhorar minha vida e eu ia poder , ainda por cima, continuar a me divertir na Ponta Negra, tomar banho no Igarapé do Mindú e fugir do Mapinguari nas matas do banho do seu Perí.
Mas não, ora: o Igarapé do Mindú, que corta Manaus no meio, virou esgoto da Coab-Am do Parque Dez. A Ponta Negra virou esgoto dos condomínios de luxo e do Tropical Hotel. O banho do seu Perí, na Ponte da Bolívia, é o esgoto da Manaus Caracarai. E como eu não gosto de tomar banho de esgoto, pra tomar banho no Rio Negro tenho que pagar R$30 reais para uma voadeira ou um barco me levar até o Tupé. Isto, em Manaus, para vocês verem como é.
As indústrias também destruíram as matas e o Curupira, o Matinta – Pereira e o Mapinguari não fizeram nada, não protegeram a floresta. Três eram poucos para enfrentar trator, moto-serra. Os mitos ficaram com medo. Eu acho. Embora a preta mura, já velhinha e morando no Asilo Dr. Thomas, achasse que não. Ela disse que era artimanha dos três malandros, que eu não me iludisse com as malícias do Curupira, do Mapinguari e do Matinta- Pereira.Eles estariam acumulando forças. Eles voltariam.
Enquanto isso, tive que começar a aprender viver na selva urbana, tive que aprender outras culturas. Tive que aprender a ser mais do que eles:
O Americano, o Europeu, o Africano, o Asiático, eles só conhecem a si mesmo. Nós conhecemos nós mesmos e conhecemos eles. Eles só conhecem a si mesmo. Eles são um. Nós somos mais. Nós somos trezentos. Trezentos e cinqüenta, com disse o Mario, amigo do Macunaíma.
Eu sei cantar o Uirapuru, do Valdemar Henriques, mas sei cantar também Sometimes, da Janis Joplin. A Madona só sabe cantar Sometime. Ela tem que aprender o Uirapuru, para chegar no meu tamanho.

(Cantar Sometime com cenas de Woodstock)

Eu sei cantar Sometime, embora tenha ficado sem terra pra morar, mesmo sendo uma cantora famosa. Famosa não quer dizer rica. Construíram um edifício na beira do Igarapé do Mindú. E novamente não apareceram nem o Mapinguari, nem o Matinta-Pereira e nem o Curupira.
Pensei que era porque já era próximo da água, ambiente da Iara, mãe das águas. Mas nada de Iara também. Mas ainda eu acredito nela. O edifício foi construído colado na margem do Mindú. Quero crer que em alguma cheia, o Mindú, comandado pela vontade da Iara, alagará o cimento e os espelhos deste prédio, que deveria ter sido construído em fort lauderday, Miami. Porque assim que é lá. Por que que tem que ser assim aqui?
Os defensores da floresta não me ajudam, mas a PM ajuda os destruidores. Outro dia, já nem queria falar mais nisto, porque minha foto saiu até no New York Times, eu e meu companheiro André Maué fomos defender nossa terra contra dois mil meganhas da PM.
Eles queriam roubar nossa terra para entregar para um grileiro construir casa pro branco e ganhar muito dinheiro. Quando vi o André apanhando de dois mil covardes, corri, com minha filha gita no colo, para defendê-lo e ai, de verdade, acho que a Iara, pelo menos a alma dela, ou sua inspiração, me ajudou.
Por que aqueles dois mil covardes até bateram mais no André e também um pouco em mim e na minha filha, mas não sei de onde tirei força, acho que a Iara incorporou , e expulsei aqueles pilantras de cima do meu marido e da nossa terra.
Fotografaram tudo e fiquei famosa até nos Estados Unidos, diz-que.
Mas depois nós fomos expulsos por uma tropa maior. O prefeito português ficou de nos dar uma terra , mas até hoje, o´, necas.... necas de terra... necas de terra...
( Entra Manaus, do Áureo Nonato )

III
( Voltando a ser eu mesma )

Em 2000, voltei a morar na mata, voltei a conviver com o canário do Rio Negro, bacural, caga-cibite, as galinhas do mato que me acordam às seis da manhã e com um pássaro que canta igual ao despertador de um celular... tchiu-tchiu-tchiu.
Verdade que gasto trinta reais por mês em telhas de barro porque todo mês o Sauim de Manaus e sua família quebram pelo menos seis telhas do meu telhado. Mas agora estou com saudade deles porque eles só aparecem do outro lado das matas do Tarumã. Do meu lado tem agora um gavião real, que anda comendo os bichinhos.
Meu marido propôs ao meu vizinho matá-lo para os Sauins voltarem. Mas meu vizinho pediu para ele não intervir na cadeia alimentar da natureza, para ele deixar o ecossistema em paz.
Eu acho que não, prefiro os Sauins, mas deixa isso para lá.
Voltei a comer só o que planto, por que tenho que comprar comida em Manaus ? Na Feira da Panair? na Feira do Bagaço? na Feira da Banana? na Feira da Compensa ? Na Feira da Manaus Moderna, que de moderna não tem nem o esgoto? Comprar comida em Select? Com gosto de merda misturada com plástico?

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