sábado, 12 de março de 2011

BREVE HISTÓRIA DA FICÇÃO CIENTÍFICA NA VENEZUELA

Ficção Científica Venezuelana: História e Pré-História
por Jorge De Abreu
tradução de Jorge Candeias



Bom, aqui estou, se bem que não tenha bem a certeza de como cheguei a este ponto, prestes a contar-vos uma história. Em vez de me pôr a escrever, bem podia ter aproveitado vários sábados deitado no meu quarto, bebendo uma limonada, enquanto assistia a uns quantos capítulos requentados de Star Trek. Teria sido uma agradável perda de tempo, mas tive de abrir a boca. Tudo começou na lista ubik-l: Vladimir Vàsquez mencionou qualquer coisa a respeito da ficção científica venezuelana e eu, impulsivo e sem pensar duas vezes, apressei-me a enviar-lhe um resumo do que conhecia (de tudo o que conhecia). Não sei bem o que aconteceu depois: se José Joaquín (editor da Alfa Eridani) leu a mensagem na lista ou se Vladimir lhe fez chegar algum boato, o certo é que fiquei encarregue de escrever este artigo. Um artigo para a Alfa Eridani sobre a FC venezuelana. Aparentemente, era o único especialista sobre o tema em vários milhões de quilómetros em redor, e assim assumi a impostura o mais dignamente que fui capaz: desatei às cabeçadas na parede.
Recorri à minha experiência pessoal, às bibliotecas e à internet e falhei miseravelmente nas três abordagens. Depois, contactei muitos outros fãs venezuelanos e graças aos que me responderam (sim, porque houve alguns trastes que ficaram calados) lá pude seguir pistas, atar fios e apresentar este artigo que é uma aproximação bastante exacta (se bem que não saiba se suficientemente precisa) à FC venezuelana.
Antes deste artigo, a única iniciativa recompilatória dos feitos da FC venezuelana deve-se a Julio Miranda (1945-1998), o qual, no prólogo a uma antologia de FC editada em 1979, tem o trabalho sinóptico de relatar o que eu defini, com absoluta arbitrariedade, como a pré-história da FC venezuelana.. A breve introdução de Miranda constitui um marco fundamental na documentação da FC venezuelana, a única referência sobre a história do género de antes de 1980. Usei o trabalho de Miranda como muleta para recensear as obras e autores que antecederam, mas que raramente influenciaram, a moderna FC na Venezuela.

Falando em termos relativos, a FC venezuelana teve um dilatado período pré-histórico (embora não tão prolongado como a tradição argentina ou espanhola; o caso venezuelano é sucinto e humilde quando comparado com qualquer destes países), e só na penúltima década do século passado a FC venezuelana atravessou, por fim, o umbral histórico. Actualmente, a Venezuela atravessa uma espécie de alta idade média, sem negar o breve período em que gozou de uma deslumbrante prosperidade helénica, pois em começos da década de oitenta começou a escrever-se com intensidade a história da FC venezuelana.
E no entanto, antes desse ponto de inflexão nos anos oitenta temos a pré-história com o seu mostruário disperso de obras que se podem classificar, com bastante amplitude e bastante imaginação, dentro do género. A pré-história corresponde, de forma difusa, principalmente à literatura de FC escrita nas décadas de sessenta e de setenta. As razões que me levaram a chamá-la pré-história devem-se a não me aperceber, nessas obras e nesses autores, e ao contrário do que opinava Miranda, de um claro movimento ou grupo literário que se dedicasse à FC como género. São obras isoladas de escritores iluminados que por sua própria vontade ou por acidente estocástico bordejaram os temas da FC ou caíram neles em cheio. Foram explosões sem reacção em cadeia, sem solução de continuidade no tempo, geralmente identificados com o género fantástico tanto por leitores e críticos como por eles próprios. Foram pouquíssimos os casos que nesse período foram etiquetados expressamente como FC.
Em rigor, Julio Garmendia (1898-1977), um dos percursores do realismo fantástico na América de língua espanhola com Tienda de Muñecos (1927), inaugura também a ficção científica na Venezuela com o conto La realidad circundante, obra menor que integra a famosa colectânea. Em La realidad circundante, Garmendia postula o uso de um artifício tecnológico para modificar a adaptabilidade humana às variadas e variáveis condições do meio físico, cultural ou social. Onze anos depois do conto de Garmendia, Enrique Bernardo Núñez (1895-1964) publica La Galera de Tiberio, um romance que extrapola a situação da Venezuela de então numa espécie de cronologia do futuro. E depois desse romance, a FC venezuelana guardaria um significativo silêncio por quase três décadas.
Em 1979, o jornal El Diario de Caracas edita a já mencionada antologia Ciencia-Ficción Venezolana, com selecção dos contos a cargo de Julio Miranda, que constitui um mostruário da FC pré-histórica. No seu prólogo, Miranda inclui os contributos à literatura de FC existentes na geração de escritores venezuelanos da década de sessenta. A maioria das obras da antologia constituem a única incursão do autor no género, pois são muito poucos os que tiveram o valor de reincidir. Em geral, os contos são essencialmente fantásticos e o elemento de FC é com frequência incidental. Devido ao carácter escasso da literatura de FC no momento da edição de Ciencia-Ficción Venezolana, esta antologia tem conotações quase exaustivas. A selecção inclui contos como Conspiración en Neo-Ucrania de Francisco de Venanzi (1917-1987), que nunca tinham sido recolhidos num livro.
Dessa camada pré-histórica provêm David Alizo (1941), com o seu livro Quórum (1967), que posteriormente se manteve afastado do género. Alguns dos contos de Quórum: Los convidados, La rebelión de Emilio, etc. Fazem cabotagem à FC. Na sua selecção, Miranda incluiu um autor francamente alheio à FC: José Balza (1939), com o conto Racine en el aeropuerto, da sua antologia Órdenes (1970), o único conto de Balza que tem relação com a FC. Da mesma forma, outros contributos extraordinários para o género que provêm de figuras dedicadas a outros campos literários são Jinetes de luz (Imágenes y Conductos, 1970) de Humberto Mata (1949), Inútil redondo seno (Rostro Desvanecido Memoria, 1973) de Pascual Estrada (1935), e Valdemar Lunes, el inmortal (Volveré con mis Perros, 1975) do obsessivo Ednodio Quintero (1947).
Casos à parte são José Gregorio Porras (1953), com o seu livro de contos curtos Andamiaje (1977), em que inclui inúmeros elementos de FC, e Armando José Sequera (1953), o qual na colectânea Me Pareció que Saltaba por el Espacio como una Hoja Muerta (1977) apresenta 32 contos de FC onde regista cenas da vida de uma comunidade de astronautas larenses (gentílico do estado venezuelano de Lara). No entanto, depois desta primeira imersão, ambos os autores não voltaram a contribuir para a FC. Da mesma forma, a escritora Iliana Gómez (1951) é autora de um trabalho inédito, Las Criaturas de la Ciencia Ficción (1978).
Um caso diferente e único é constituído por Luis Britto García (1940), o qual em duas colectâneas: Rajatabla (1970, Prémio Casa de las Américas) e La Orgía Imaginaria (1983), e um romance: Abrapalabra (1979, também Prémio Casa de las Américas), recorreu insistentemente a temas elementares da FC: desordens temporais, seres extraterrestres e jogos com a realidade. Insistentemente, quase com teimosia, as suas obras sugerem, sussurram os factos, mas não os gritam. Um conto seu, Futuro, foi incluído na antologia Lo Mejor de la Ciencia Ficción Latinoamericana (1981). O próprio Britto García reconheceu durante uma aparição pública que gostaria de ser reconhecido como autor de FC. Foi uma declaração que fez estremecer mais do que uma coluna na intelectualidade venezuelana.
Em 1973 Pedro Berroeta (1914–1997) publica o segundo romance conhecido da FC venezuelana, La Salamandra, onde a história se desenvolve num único e interminável minuto. O terceiro romance de FC venezuelana, La religión de los Hanksis (1989), é publicado na década seguinte e foi escrito por um argentino, Carlos Sabino. Embora tenha sido publicado durante o período histórico, o seu autor é alheio ao género e à corrente principal de escritores e do fandom identificado com a ficção científica, um verdadeiro pária na tradição dos escritores pré-históricos; Carlos Sabino é um sociólogo cujo livro La Metodología de la Investigación deveria ser de leitura obrigatória para todos os cientistas.

A década de oitenta começa com uma nova geração que, ao contrário das gerações anteriores, foi alimentada durante a infância com os clássicos da FC anglo-saxónica e não se deteve a considerar os aspectos aparentemente não intelectuais do género. Esse grupo decidiu organizar-se primeiro e criar depois, se bem que sem dúvida tenham utilizado a organização como um meio de facilitar o processo criador. Foi o nascimento do fandom venezuelano, de baixa estatura e desnutrido, mas totalmente autóctone. O movimento do fandom organizado, à distância de duas décadas, parece simultâneo e concertado, mas na realidade foi caótico e desorganizado. No entanto, até das loucuras se obtêm dividendos: nos dez anos que vão de 1982 a 1992 cimentou-se o que é actualmente a moderna FC venezuelana: basicamente composta por fãs, identificada com os temas do género e com o seu próprio passado literário fantástico e sisudamente intelectual, mas sem pudor de afirmar de viva voz a natureza do seu amor… bem, na realidade com um pouco de afonia.

O início desta mudança na FC venezuelana, a passagem da pré-história ao período histórico, ocorreu em inícios dos anos oitenta, quando um par de estudantes de física da Universidade Simón Bolívar (USB) conceberam a criação de uma associação de fãs de FC. César Villanueva (1963) e José Ramón Morales (1963) já tinham organizado os dois primeiros concursos literários de FC na USB, e como estavam imersos na organização dos concursos esbarraram com dois factos que os iluminaram: a) não eram os únicos fãs do género na USB, pelo contrário, havia uma multidão deles (obviamente sob o ponto de vista de quem se acreditava sozinho), e b) souberam da existência de uma Coordenação dependente da Direcção de Desenvolvimento Estudantil da universidade, que apoiava a criação e funcionamento de organizações estudantis. A convocatória para a formação de um grupo de FC teve lugar no princípio de 1984 e, como resultado das reuniões realizadas quarta-feira após quarta-feira na antiga sala de estudantes de física (chamado pelas más-línguas COF: Centro de Ociosos de Física), a 24 de Maio de 1984 é oficialmente inaugurado o UBIK, Clube de FC da USB. Aquele grupo fundador incluía, além de Villanueva e Morales, Imre Mikoss, Yamil Madi, Víctor Pineda e Jorge De Abreu. De forma independente, durante esse mesmo ano teve lugar outra convocatória na Universidade Central da Venezuela com o mesmo fim de constituir um agrupamento de FC; no entanto, essa iniciativa aparentemente caiu no vazio e não prosperou.
Em 1986, o UBIK começa a editar a Cygnus, a primeira revista conhecida de FC venezuelana. Foram publicados cinco números da Cygnus ao longo de oito anos. Nas páginas da Cygnus apareceram pela primeira vez os contos de muitos dos escritores dessa nova geração da FC.
Para acabar de completar o círculo, em Julho de 1991 Darío Álvarez, Ingrid Kreksch, Francesco Pellegrini, Gonzalo Vélez e outros, criam a ALFA (Asociación Libre de Ficción Anticipatoria), a segunda associação venezuelana de FC, que a partir de 1993 começa a publicar a revista Solaris, da qual lamentavelmente só editam um número. Em 1994, Darío Álvarez em representação da ALFA e com a colaboração da Fundação REACCIUN (Red Académica de Cooperación, Comunicación e Intercambio entre Universidades Nacionales) da Venezuela cria a lista de correio ALFA-L, a primeira dedicada ao género na Venezuela e uma das mais antigas da América hispânica.
Paralelamente, em finais desse mesmo ano, a UBIK põe online a sua BBS. E assim, em 1994, os fãs de FC de toda a Venezuela podiam por fim intercambiar opiniões e organizar actividades de forma eficiente, apesar das limitações de uma tecnologia que não estava amplamente distribuída. Na BBS da UBIK gerou-se principalmente entre 1996 e 1997 o projecto literário Historia Universal que conseguiu juntar vários autores venezuelanos (Yván Ecarri, Miguel Ángel González, César Lezama e William Trabacilo, entre outros) e mais de vinte contos. A UBIK BBS cessou a sua actividade em 1998 devido à morte súbita do computador que a alojava e à presença já dominante da world wide web. De facto, em 1997 (a 10 de Janeiro) inaugura-se a página web da recém-constituída Asociación Venezolana de Ciencia Ficción como uma extensão natural do UBIK universitário.
Em 1996, Alirio e Daniel Gavidia (Alirio era um velho conhecido da UBIK, pois tinha participado em vários concursos literários) começam a editar a revista electrónica Koinos: A revista publicou durante os seus quatro números de existência (até ao ano 2000) vários contos de FC.
O escritor Jorge Gómez Jiménez (1971), editor da revista Letralia, compromete-se com o género em 2000 ao publicar, através da sua editora digital Letralia, a antologia de contos 2000: El Futuro Presente, que reuniu vários autores de FC da América Latina. O próprio Gómez Jiménez, que escreveu vários contos de FC, contribuiu com El eco de Frankenstein, uma fantasia sexual cyberpunk, que fez parte dessa antologia.
Durante os 19 anos que passaram desde o surgimento do primeiro número de Cygnus, a nova FC venezuelana produziu autores e obras interessantes e muito mais comprometidas com o género do que tinham sido a literatura e escritores precedentes. Muitos autores se deram a conhecer desde então, alguns mantêm-se com persistência, outros talvez desfrutem de um longo recesso com a esperança de voltar à carga quando o clima melhore. É este último o caso de Ermanno Fiorucci (1938), que escreveu contos como Precisión, equilibrio y perfección (1988), conto humorístico sobre o encontro imediato entre um terrestre demasiado pedante e um OVNI e, recentemente, Belleza ante todo (2003), ¿Morir por…? (2003) e Silencio ruidoso (2004).
César Lezama, tragicamente falecido em 1998, segundo classificado do IX Concurso Literário de UBIK com Pequeña señorita nadie, legou-nos a sua prosa vibrante em histórias cheias de intriga dos contos que compõem as Crónicas de la Gran Familia. Outro participante do concurso, Alfonso Linares (vencedor na VII edição com Quo Vadis?, publicado em Axxón n° 34, 1992) mostra-nos que a rota terrestre está já semeada nos rancores do passado (Los Ecos del Pasado, 1994).
Outros autores incluem César Villanueva (Ecce homo, 1986), Federico Bethencourt (Estancia vespertina, 1988), Rafael Escalona (Relato 3, 1988; Escrito MCMLXXXV, 1990), Yván Ecarri (El Piso Sucio, 1994), Yamil Madi (Golpes en la escotilla, 2005), Juan Carlos Aguilar (Realidad, 1987) e William Trabacilo (os contos de Las Crónicas de Oxerai, 1996 - 1998 e o conto vencedor do XIII Concurso Literário de UBIK Quítame la vida, pero cuídala). Juan Carlos Aguilar também escreveu vários artigos relatando as suas peripécias no mundo das convenções anglo-saxónicas de FC, um dos seus amores no género. O outro, poucos desconhecem: a obra de Isaac Asimov, à qual também dedicou parte da sua inspiração.
Recentemente surgiu Vladimir Vásquez com uma antologia publicada pela Alfa Eridiani (Universos Internos, 2004). Desde o estado de Táchira escrevem autores como Eduardo Rodríguez com uma obra de teatro para marionetas (Los Viajes Ecogalácticos) e José Antonio Pulido (1975) com Hombres de Luz (Teatro). Por fim, Jorge De Abreu (1963), um autor que conheço bastante bem, dedicou-se ao ofício literário com altos e baixos de fúria criadora durante todo este período. São seus os contos Trina (1986), Conversación privada (1987) e recentemente Confesiones de un ebrio (Axxón n° 142, 2004) e Un dulce aroma a flores ultravioleta em Eridano n° 8 (2004), entre outros.
Em 2001, com o despertar do novo século, um grupo de estudantes da Universidade de Carabobo (UC) da cidade de Valencia, começa a editar a Nostromo, uma revista em papel dedicada primordialmente à publicação de ensaios de FC e fantasia. A responsabilidade editorial recai principalmente em Ramón Siverio, um estudante de engenharia eléctrica da UC. A Nostromo já publicou seis números e tem maquetado o sétimo mas espera ainda recursos para a sua publicação. Sempre o sujo dinheiro a dar a cara para estragar as coisas.
Em Outubro de 2003 o Star Wars Fan Club Venezuela organizou a primeira Convenção Latino-Americana de fanáticos de Star Wars, ao passo que o Star Trek Club Venezuela tem programada para meados de 2005 a primeira Expotrek. Ambos os clubes se dedicam a actividades de promoção e discussão, entre os fanáticos, de temas pertinentes às respectivas produções audiovisuais.
Em 2002, Jorge De Abreu retoma a edição de Desde el Lado Obscuro (original de 1998 sob orientação de Juan C. Aguilar), publicação destinada a divulgar e comentar notícias e artigos sobre o mundo da FC e, em 2004, Ubikverso e a segunda época do Necronomicón, publicações periódicas dedicadas à ficção de FC, fantasia e terror.

A FC venezuelana encontra-se em incubação desde há duas décadas. O reconhecimento do género pelos novos autores e a formação de um grupo que em maior ou menor medida maneja os mesmos códigos permitem alimentar a esperança de que algo pode eclodir se as condições do meio ambiente melhorarem. A extrema aridez do clima editorial e uma economia erodida depois de quase trinta anos de desatinos políticos e vinte de debacle económica são os principais inimigos de uma FC saudável… entretanto, os organismos medram e esperam pela formação de um nicho, uma abertura que lhes permita competir pela luz… e neste negócio a luz é inimiga da entropia.

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