quarta-feira, 10 de agosto de 2011

ROA BASTOS, A COMUNIDADE ANDINA E A PAN-AMAZÔNIA: O DISCURSO PLURIÉTNICO DA LITERATURA

DISCURSO DE APRESENTAÇÃO DE AUGUSTO ROA BASTOS NA SESSÃO DE OUTORGA DO TÍTULO DE DR. HONORIS CAUSA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA ( in memoriam)





Magnífico Sr. Reitor Lúcio José Botelho, autoridades presentes, conselheiros, diretores de Centros, professores, estudantes e demais ouvintes,

Prezado amigo Carlos Roa, a quem agradeço por ter vindo representar seu pai,









Nuestra alma es idéntica a nuestra imagen.

Nuestra cara, nuestra oreja, nuestras piernas,

Nuestros brazos. Toda nuestra imagen.

Está en medio de nosotros nuestra verdadera alma.

Se encuentra en el medio.







As palavras do informante do grupo indígena paraguaio Nivakle ensinam como o ser humano nunca deixou de criar imagens e ver-se como imagem de suas criações. Enquanto houver ser humano haverá representação e isto está no bojo de qualquer cultura, seja esta poesia cantada, escrita, dançada ou desenhada em códigos aparentemente indecifráveis, haverá sempre alguma solidariedade a ser descoberta através da arte. A lástima é que tenhamos sofrido com as hierarquias entre culturas diferentes, entre territórios, entre seres humanos, desde a colonização.

No início do século XX, o peruano Luis Alberto Sánchez, em visita forçada a Assunção, se refere à "incógnita do Paraguai", aludindo a um vazio cultural existente. Esta visão perpassa muitos discursos de intelectuais latino-americanos que acabam identificando um "atraso" no sistema cultural paraguaio relativamente a outros países. Entretanto, mais que ignorância, isto revela um preconceito, pois um país bilíngüe em quase 90% da população com uma guaranização do castelhano e uma castelhanização do guarani exige novas categorias e ferramentas para a leitura do campo cultural a partir da inclusão de práticas de oralidade.



Como escritor, Augusto Roa Bastos, soube extrair dessa realidade híbrida e multifacetada, em termos culturais, um relato em que a experiência histórica carrega uma marca da subjetividade e de uma visão mítica, mesclando em seus romances desde Hijo del hombre (1960); Yo el Supremo (1974); Vigilia del Almirante (1992); El fiscal (1993); Madame Sui (1996) diversos gêneros literários se abrem como um leque ao leitor, passando da biografia, ao ensaio e da autobiografia ao testemunho para transformar a literatura num caleidoscópio em que estes discursos se cruzam de modo circular com o uso da simultaneidade temporal que traz à baila a marca da violência. A quem diga que a história da América Latina é uma história de violência e Roa Bastos apresenta, em grande parte de seus textos, a lucidez de quem captou o trauma cultural bélico, seja através da memória da guerra mais violenta do continente americano no século XIX: a guerra Grande, responsável por dizimar mais da metade da população masculina do país e chamada no Brasil de Guerra do Paraguai (1864-1870) e na Argentina e Uruguai como a Guerra da Tríplice Aliança. Outro conflito, a Guerra do Chaco entre o Paraguai e a Bolívia de1932 a 1935, foi vivenciada por Roa Bastos entre os jovens combatentes por ter nascido em 1917.

Pode-se entender por que o elemento épico nunca se dissociou da biografia de Roa Bastos. Desde sua juventude, inicialmente pelas guerras em que participou como militar, jornalista ou depois na luta interna em seu país como militante contra um regime de exceção que, em 1947, lhe obriga a exilar-se para não morrer como muitos de seus companheiros de geração.

Sem a pretensão de abranger todo o universo da produção roabastiana, vale relembrar que se tornou um nome respeitável no panorama cultural latino-americano, além de escritor consagrado na literatura em língua espanhola por sua capacidade de crítica, e engajamento e autocrítica, posturas consideradas até certo ponto anacrônicas no contexto do século XXI.

Na América do Sul como parte da geração do “boom”, de fins dos anos 50 aos 70 desenvolveu uma escritura transculturadora como a do brasileiro João Guimarães Rosa, do peruano José María Arguedas; Garcia Márquez e Juan Rulfo. Como um dos gestores da novelística em tempos de Guerra Fria e das ditaduras experimentou o monoteísmo do poder na trilogia composta por Hijo del hombre e Yo el Supremo e El fiscal – eixo temático de sua narrativa, segundo palavras suas. Em Hijo de Hombre, primeiro romance trata de um percurso mítico pela história paraguaia através de um jogo simbólico com o cristianismo; Yo el supremo, o segundo trata da ditadura de Gaspar Rodríguez Francia – conhecido como “Doutor Francia” – que governou o país quando da independência da coroa espanhola - 1814 a 1840 mesclando subjetividades num Yo plural que engloba o próprio ser que escreve.

El fiscal, o terceiro romance da trilogia, relaciona dois tempos em dois espaços: o sujeito diaspórico Félix Moral que vive na França em viagem camuflada de retorno, sob a ditadura de Stroessner no século XX. E a memória de outro período autoritário (entre 1850 a 1870) entre focos que se superpõem com o governo de Solano Lopes, cujo delírio leva o país à Guerra do Paraguai. Ao final há uma constelação de sentidos na redundância do espetáculo de sacrifício que reúne o exilado à cena de morte de Solano Lopez que renarra parodicamente o martírio da crucificação.



Estes romances estão traduzidos em diversas línguas, e alguns deles receberam mais de uma versão em uma única língua. Ainda há muito que traduzir de sua obra para o português. Sua última vinda ao Brasil foi para o lançamento de um de seus últimos livros mais consagrados - Vigilia del Almirante (1992) – editado em português pela Mirabília, lançado no ano de celebração do Quinto Centenário da Descoberta da América. Roa Bastos também é autor do roteiro cinematográfico de El trueno entre las hojas (1958) entre outros. Tarefa árdua a de resumir em pouco tempo essa rica trajetória como romancista, contista, autor de roteiros. Por isso apenas esbocei i alguns temas nesse breve panorama, para dizer que foram poucos os escritores latino-americanos que conseguiram em sua escritura dar conta da pluralidade lingüística e cultural, da oralidade escrita e da escritura em forma oral que o bilingüismo realiza. Também a transculturação ocorrida como marca da colonização surge para romper o equilíbrio e a linearidade da narrativa exigindo um leitor atento e maduro para observar o sentido das marcas de ocultamentos, das tantas mortes culturais sofridas historicamente pela violência de imposições externas e internas.



Por isso quando encontro o conceito de Walter Mignolo de que para entender os conflitos sociais na América Latina seria necessário perceber a raça como uma categoria mais importante do que a de classe, entendo a perspicácia de Roa Bastos em sua defesa das culturas indígenas. A discussão sobre a crise no Equador e na Bolívia no ano de 2005 suscita uma revisão dessas categorias e nos permitem repensar que a classe se relaciona como categoria à história européia, mas etnia, conseqüência direta da colonização do século XVI, para a América Latina , segundo a concepção de Aníbal Quijano, está no bojo das relações entre cristãos que reivindicavam sua superioridade em relação a religiões inferiores como a dos muçulmanos e judeus e às não-religiões dos indígenas e africanos. Como não deixar de apontar a Augusto Roa Bastos como uma referência precoce com a organização da obra Las culturas condenadas, em 1978, ao denunciar o etnocídio das culturas indígenas?

Nesta obra se desbravam a mitologia, relatos e poemas das dezoito tribos paraguaias para mostrar como a "raça superior'" dos brancos e cristãos europeus, matriz do poder e de racismo, hierarquizou os seres humanos não brancos e europeus. Como intelectual Roa apresenta inúmeras pesquisas sobre a riqueza deste patrimônio imaterial que são as culturas indígenas em seu país.



O foco de Roa Bastos ao apresentar a cultura dos sobreviventes é a demonstração de que é a humanidade quem perde com o extermínio que continua sendo diário, segundo ele:

" não pode ser compreendida em toda a sua significação mas em um marco global de nossas sociedades baseadas no regime de opressão e espoliação dos estratos humanos que elas consideram "inferiores"; seu resultado é um processo de extinção destas comunidades. A tentativa de "civilizar" o índio terminam por exterminá-lo."

Sua vida no exílio não o afastou da problemática regional. Ninguém como Roa Bastos se engajou mais na integração regional da cultura dos países do Cone Sul ao propor uma discussão bilateral sobre a questão dos “brasilguaios”, em 1995. Graças a esforços desse intelectual orgânico, bem como unidos a movimentos fronteiriços, hoje proliferam as cooperativas que reúnem ambas as nacionalidades em solo paraguaio.

As palavras de Roa Bastos podem servir não somente aos paraguaios, a bolivianos, aos equatorianos ou aos peruanos, mas também a nós que temos quase duzentas línguas indígenas e portanto culturas, praticamente desconhecidas em território brasileiro. A leitura de Las culturas condenadas serve para repensarmos a questão indígena em diversos aspectos. A concessão de um território espacial - uma reserva não dá conta do respeito e da necessidade de difusão cultural de que são merecedores. Os guaranis que vivem aqui do nosso lado e morrem de fome nas reservas indígenas de Massiambu e do Morro dos Cavalos. À beira de uma rodovia e cercados por terras inférteis, um território não basta e como diz Bartomé Meliá- "agonizam cantando".

Enfim, a representação de Roa Bastos mostra a cultura pluriétnica do Paraguai que, na verdade, nada tem de “incógnito”, exige apenas disposição e novas categorias para pesquisá-lo e descobrir sua riqueza cultural. Este era o olhar de Roa e daí vem um lirismo que não se esgota em sua prosa e transcende gêneros e que denso de humanismo e energia merece ser revisitado também como um dos poema da obra El naranjal ardiente, escritos entre 1948 e 1949. Lembrem-se de que interna e externamente era o período pós-guerra, embora só tenha sido publicado em 1983.



LOS HOMBRES



Tan tierra son los hombres de mi tierra

Que ya parece que estuvieran muertos,

Por afuera dormidos y despiertos

Por dentro con el sueño de la guerra.



Tan tierra son que son ellos la tierra

Andando con los huesos de sus muertos.

Y no hay semblantes, años ni desiertos

Que no muestren el paso de la guerra.



De florecer antiguas cicatrices

Tienen la piel arada y su barbecho

Alumbran desde el fondo las raíces.



Tan hombres son los hombres de mi tierra

Que en el color sangriento de su pecho

La paz florida brota de su guerra.





E para concluir:



Segundo a cultura guarani, o ser humano ao morrer tem a possibilidade de renascer, mas poucos são os que o conseguem. Disso depende toda a trajetória individual. O primeiro nascimento é uma dádiva, o segundo são as sementes plantadas nos demais.

Até pelas datas de seus dois nascimentos, Don Augusto comprova uma vida emblemática. Nasce no mesmo ano da Revolução Russa (1917) e morre renascendo com uma data significativa, 2005, a celebração do IV centenário do primeiro romance moderno do Ocidente - el Quixote.

Augusto Roa Bastos foi quixotesco em vida? 1917 - 2005... essas datas poderiam corresponder às tensões entre as armas e as letras, existentes na trajetória dessa figura transnacional que se formou na vanguarda paraguaia dos anos 40, luta contra o poder político local e depois passa a representar-lhe ficcionalmente em várias de suas obras. Quanto ao público, Roa Bastos deixa claro que não escreve para um público determinado.

Cito:"O público escolhe seu próprio livro. Também não escreve para a posteridade. A posteridade não é rentável".

Não teme anunciar que escreve para sobreviver porque nunca deixa de reivindicar seu direito de interpretação; mesmo no exílio instaura uma voz. Tendo nascido paraguaio, após ter sido expulso de seu país de origem em um complô mal explicado em 1982, torna-se apátrida e recebe o direito à nacionalidade francesa e espanhola, adotando em 1983 a cidadania hispânica.

Representante da diáspora latino-americana seria hoje classificado como mais um “sudaca”? Extraindo saberes do sofrimento de uma geração que sofreu o êxodo político, soube deixar uma grande lição ao transformar a ficção da memória em memória da ficção.

Cito: Não nos resta outro refúgio que a sonhadora memória do esquecimento. Mas o esquecimento também pode esquecer que esquece. Só onde há tumbas a ressurreição é possível.



Augusto Roa Bastos renascido, aceita essa homenagem porque:



Nuestra alma es idéntica a nuestra imagen.

Nuestra cara, nuestra oreja, nuestras piernas,

Nuestros brazos. Toda nuestra imagen.

Está en medio de nosotros nuestra verdadera alma.

Se encuentra en el medio.




Alai Garcia Diniz










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